"Foi uma noite de pânico", relata brasileiro que vive em Veneza

Era pouco antes da meia-noite quando ouvimos o alarme. Nós, moradores de Veneza, estamos acostumados com ele. Sempre que há risco de inundar a cidade, o sinal sonoro dá o alerta. De acordo com a intensidade e a frequência dos toques, nós sabemos quantos centímetros a maré vai subir.
Na noite do dia 12 de novembro, porém, percebemos que algo mais grave estava por vir.
O alarme que ecoava pelas vielas, canais e ruas de Veneza aumentava cada vez mais e, pior, era contínuo. Cada toque indicava que o nível da maré havia subido mais 10 centímetros na cidade. Nesse dia, acompanhamos os 20, os 30, os 40 centímetros... até perdemos a conta em meio ao volume sonoro que aumentava mais e mais e não parava. Entramos em desespero.
Foi uma noite de pânico. Ao mesmo tempo que acompanhava ao vivo o nível da água se elevando na viela onde moro, mensagens dos amigos começaram a apitar no celular. Eram fotos, vídeos, relatos, pedidos de ajuda, perguntas sobre desligar ou não a chave geral de luz para evitar um desastre maior.
Boa parte deles estava vivendo a mesma situação do meu vizinho do térreo. Encontrei ele desesperado, com baldes nas mãos, tentando tirar à pulso a água que transbordava sobre a barreira de proteção do prédio.
Nos comércios, vimos os produtos boiando como num aquário. Nas ruas e prédios, todos se ajudavam. Mas sabíamos: quando a maré supera todas as barreiras, é uma luta sem resultados. Só nos resta levar para pontos mais altos o que pudermos carregar.
O sentimento que reinou nessa noite foi o de impotência. Máquinas de lavar, fogões, sofás e outros itens pesados já estavam perdidos. Depois de um tempo, não havia mais nada a fazer. Ficamos parados, atônitos, assistindo a inundação.
A cheia do dia 12 foi a mais aterradora. Depois dela, vieram outras, em proporções graves, mas menores. Porém, até hoje Veneza vive numa espécie de stand by.
Apenas na segunda, dia 18, os supermercados voltaram a abrir para vender alguns produtos. Em boa parte deles, as máquinas de cartão de crédito e de débito não funcionam, porque a rede elétrica entrou em curto. Nas filas, as pessoas contam os trocados em dinheiro vivo e selecionam o que levar. Eu tive que ir para Mestre, no continente, fazer minhas compras. Idosos e pessoas com dificuldade de locomoção dependem da ajuda de vizinhos e amigos.
As ruas de Veneza estão estranhas. As pessoas andam cabisbaixas, reinam o silêncio e o clima de desolação. Móveis, geladeiras e outros objetos estão amontoados nos cantos esperando serem recolhidos pelo sistema público de coleta de lixo, que não dá conta da demanda.
O turismo também está inerte. A cidade esvaziou. Os viajantes cancelaram as reservas em hotéis e os eios agendados. Em contrapartida, muitas pessoas organizaram pelas plataformas sociais um mutirão e jovens de toda a Itália se mobilizaram e vieram ajudar na limpeza e recuperação.
Hoje, dia 21, a cidade ainda conta os prejuízos. Muitos negócios estão colocando à venda pela metade do preço as mercadorias danificadas ou até mesmo aceitando oferta livre.
Também há a extrema preocupação com relação aos prédios históricos, como a Basílica de São Marcos, ameaçados pela corrosão que a água do mar pode causar. O governo da Itália vai ressarcir moradores e comerciantes pelas perdas com a inundação, mas os danos a obras de arte, mosaicos e igrejas podem ser definitivos. Acho que essa é a principal questão que Veneza precisa afrontar agora.
Ninguém esperava que isso viesse a acontecer. Fomos pegos realmente de surpresa e vimos, da pior forma, como Veneza é frágil. E não apenas eu, que moro aqui há 14 anos. Há toda uma geração de venezianos que só conhecia histórias semelhantes por relatos de seus pais a avós.
De certa forma, acredito que essa cheia foi uma previsão do nosso futuro aqui em Veneza. Ela mostrou o quanto é preciso mudar na cidade para que as cenas que vivemos naquela noite e nos dias seguintes não voltem a se repetir.
* Leandro Anhold Zaffalon, 42 anos, é agente de uma empresa aérea e consultor de turismo na Veneza Para Brasileiros. Ele mora na cidade italiana há 14 anos.
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